Randy Mosher: a vida numa bolha de cerveja
Seria fácil passar na rua por esse senhor de barba branca farta, alinhada, e camisa xadrez de lenhador, e pensar que ele está a caminho do banco para sacar a aposentadoria, ou do clube para jogar bocha com os amigos da velha guarda. Mas, apesar da vibe de Papai Noel tranquilão, Randy Mosher é um dos mais badalados mestres cervejeiros dos Estados Unidos, autor de livros que são verdadeiros manuais dos amantes da bebida, como o Radical Breweing, e ainda é designer de alguns dos rótulos de cerveja mais icônicos que se vê por aí.
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Meu encontro com Randy foi em São Paulo, anos atrás, nas mesas do saudoso Melograno, um dos primeiros bares especializados em cervejas especiais da cidade, que fechou em 2016 para dar lugar ao popular NaMadá. Nosso chopinho foi lager, claro, como manda o figurino do bom boteco – mas foi com a doppelbock austríaca Eggenberg Samichlaus Classic, com 14% de teor alcoólico, o que pode ter embaralhado um pouco o final dessa entrevista. Randy serviu sua taça e, com uma solenidade mais comum aos enólogos, fez movimentos circulares para verificar a carbonatação e usou a palma da mão para dar uma leve esquentada na cerveja. “Eu poderia dizer que o faço para liberar o aroma”, justificou, “mas também é para aliviar essa temperatura que eu chamo de ‘crazy cold’, que vocês gostam por aqui.”
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Em dois minutos de conversa, Randy já tinha passado para a Grécia Antiga e fazia explanações sobre a injustiça histórica com os deuses cervejeiros. “Foi lá que se estabeleceu que o vinho era a bebida dos civilizados e a cerveja, a dos bárbaros”, disse, entre um gole e outro. Segundo o designer, no Norte da Grécia, um deus bárbaro chamado Sabázios representava o domínio do homem sobre a natureza e, para os antigos, o ato de criar uma coisa transcendente como o álcool quase do nada mostrava esse domínio. Por isso, esse deus passou a representar a cerveja. “Só que os gregos gostaram dele, o fantasiaram com uma toga e louros e ele virou Dionísio, o Deus do vinho”, contou, indignado.
Seja esta explicação é pura história clássica ou apenas um devaneio etílico (“eu costumo inventar coisas”, me disse o designer ao final do encontro), é difícil não ser conquistado por um cara gente boa e engraçado desses.
Randy Mosher: “O ursinho da Colorado era terrivelmente entediante”
Randy é um tipo de designer incomum, sem frescuras nem modéstias. Ele ficou conhecido no Brasil especialmente por desenhar o icônico rótulo da cervejaria Colorado, de Ribeirão Preto, uma das pioneiras em cerveja artesanal no país, criada em 1996. Hoje, o urso é tão famoso que dá nome à rede de taprooms da marca, “Bar do Urso”, espalhados pelo Brasil. Segundo Randy, o animal não foi ideia dele, mas foi ele quem o aperfeiçoou. “Eles já tinham um urso no rótulo, mas ele era terrivelmente entediante”, brincou.
Randy Mosher
Desde 2010, Randy aplica seus conhecimentos cervejeiros em uma pequena cervejaria de Chicago, a 5 Rabbit Cerveceria. Além de diretor de arte, ele é sócio da marca, junto com parceiros do México e da Costa Rica. Neste encontro, conversamos com Randy sobre cerveja, história e o seu processo criativo. Confira abaixo algumas pérolas do cervejeiro no nosso papo:
Blog: Você adora conjecturar sobre a história da cerveja, né?
Randy Mosher: Lógico! A cerveja faz parte dos primórdios do povo agricultor. Pense nos nômades, há 10 mil anos, com sua vida difícil, se mudando o tempo todo em função das estações, da caça, da colheita… Eu vejo eles como uma gangue de motoqueiros. São só uns caras que conquistaram a liberdade e não precisam ir trabalhar todos os dias, sabe? Eu imagino um deles chegando “em casa” e ouvindo a mulher dizer: “querido, prove isso! Se chama pão! Se você quiser ficar aqui, plantar, colher e parar de sair com seus parças motoqueiros, nós podemos ter pão todos os dias!” O cara pensa, “hum, legal, mas será que vale trocar a liberdade por pão?” Só que, na próxima vez, ele chegou em casa e a mulher o esperava com cerveja. Quando ele percebeu que podia se estabelecer e ter cerveja todos os dias, ele topou na hora! Porque a agricultura não é portátil: você tem que plantar, colher, estocar, manter seco, manter os ratos afastados… estabelecido em um lugar só, o homem teve o pão e a cerveja.
Então a cerveja teve um papel importante na sociedade…
E tem até hoje. Se você coloca muita gente aglomerada em uma cidade, você cria problemas, certo? Mas se você adiciona um pouco de álcool, você cria um bar, um lugar de confraternização, um senso de comunidade. O ser humano não convive bem de perto, numa boa, sem álcool. Acho que é isso que faz com que os alemães sejam tão bem sucedidos como país.
Como é seu processo criativo como designer? Você tem alguma referência legal no meio?
Eu vivo numa bolha de cerveja. Eu praticamente não tenho contato com movimentos de designers, não faço coleção de revista de design, não acompanho as publicações. Os caras que mais me inspiram já morreram há 50, 60 anos. Eu tento fazer algo diferente, seguir a minha direção, não fico pensando na tendência, sabe?
E qual é a sua direção, normalmente?
Para criar um design, tem que pensar de dentro para fora. Tem os aspectos técnicos – o espaço, a cor, a textura, a tipografia. Eu sou fã de tipografia, parto sempre dela. É como a música! A tipografia desperta uns sentimentos misteriosos na gente.
Você se inspira como? No sabor de uma cerveja? Consegue provar todas antes de desenhar um rótulo?
Nem sempre. Não acho que isso seja uma prioridade no processo. Mais do que a cerveja que eu desenho, me interessam as pessoas para quem eu desenho. Eu quero saber quem são, do que gostam. Eu tento definir o que a marca vai conseguir ser e o que ela não vai conseguir ser. Afinal, a marca não pode escolher ser tudo, representar tudo. É definindo isso que se entende qual é a sua missão.
O design de um rótulo é a mensagem. Qual é a mensagem que eu quero passar sobre essa cerveja? O ursinho da Colorado, por exemplo, era terrivelmente entediante. Achei que a mensagem tinha que ser mais forte, que o urso poderia ser um pouco mais expressivo. Você tenta projetar essa identidade em uma questão visual.
Eu me concentro no meu mundinho e tento não dar bola para as escolas de design, escola disso, escola daquilo. É uma liberdade enorme não ter que se preocupar com isso. Está vendo o sol no rótulo da Black Sun? (Pergunta apontando para o pôster que ilustra a Irish Dry Stout da americana Three Floyds, pendurado na parede). Ele veio de uma tatuagem no cotovelo do dono da cervejaria. Este é o espírito.
Randy Mosher: Direto da fonte
Uma escola:
“A belga. A beleza da cerveja belga é que, por mais complexa que ela seja, ela é facilmente bebível e degustável. É muito difícil que uma belga te dê um nocaute logo de cara, são sempre sofisticadas.”
Um estilo:
“Cervejas de trigo são, para mim, as melhores do mundo. Fizemos uma com maracujá lá em Chicago, uma delícia. Adoro o estilo, a cremosidade, o leve ‘apimentado’ delas.”
Uma cor:
“A cor Oktoberfest, aquele dourado profundo.”
Um rótulo:
“Os da Lindemans. São de um designer amigo meu. Foi ele quem me ajudou a começar no mundo dos rótulos. Também gosto demais da Bodebrown. Acho divertido que eles têm uma cerveja chamada ‘Perigosa’. Parece que eles gostariam de chamá-la ‘Venenosa’, mas a vigilância sanitária não achou uma boa ideia.”
Entrevista com Randy Mosher publicada originalmente em 2012 no extinto blog do @EuBeboSim.